Bem, antes de mais nada, gostaria de dizer que me preservo ao direito de utilizar esse blog para escrever asneiras e outras futilidades e que, apesar da exceção que abro hoje, não gosto de trabalhar ou de escrever sobre meu trabalho aqui.
Também espero deixar claro que quando me refiro a trabalho, falo especificamente da capacidade de análise da minha profissão e não do meu objeto de prática diária da mesma. Trabalho com História Antiga e não com História Contemporânea, muito menos com História do Brasil. Porém isso não me torna alheia ao tema, nem incapaz de sobre ele elaborar quaisquer opiniões.
Além disso, a análise é sobretudo uma análise pessoal; bem como toda análise de cunho ou influência historiográfica - Quem acredita que historiadores são isentos, vive de ilusão. O historiador que se acha isento é antes de mais nada, um péssimo profissional. Quem acredita que escreve uma História isenta baseada em "Fatos" é imbecil.
"Fatos" não existem. Nem sequer a "Verdade". O que existem são interpretações.
Eu não queria falar sobre a eleição, ainda mais aqui: meu cantinho de besteiras e pensamentos particulares. Quem acompanha esse blog (olá meus poucos leitores!) vai achar no mínimo estranho o tom de seriedade do aviso inicial e do texto a seguir. Não se assustem, também falo sério quando preciso.
Aliás, falo sério a maior parte do tempo. Mas isso é assunto para outro post.
O que tem me incomodado em ficar quieta sobre o tema é que, na minha visão, estamos passando por um momento crucial na História desse país, que pasmem, está sendo pouco analisado ou nem sequer comentado.
Não falo da "Era Lula" (Posso chamar assim - tanto pro bem, quanto pro mal?) ou na definição partidária de uma ou mais pessoas, estou falando de uma transição que se efetua na sociedade brasileira como um todo.
Vivencio a História política do país há bem pouco tempo; Nasci nos fins do governo Figueredo, fui criança na Era Sarney, tinha 8 anos em 1989-1990, nem sequer era pré-adolescente durante o Impeachment, mas fui adolescente nos anos FHC e finalmente adulta na Era Lula (vou manter o nome). Minhas lembranças incluem o famigerado cofrinho do cometa Halley com diversas notas, que mensalmente era levado pela minha avó ao banco para ganhar novos carimbos, das carreatas de 1989 e do look horroroso da Marília Gabriela no primeiro debate (ela hoje parece muito mais nova e bonita), do Casoy no debate Collor-Lula, das constantes greves bancárias de 1990-1992, de fazer contas com a URV na hora do lanche no recreio, das greves na faculdade com a posse do reitor Vilhena na UFRJ, de como vi uma faxineira do IFCS chorar em 2002 ao receber, pela primeira vez em 8 anos, um carregamento de vassouras novas.
Nasci na classe média, vivi a maior parte dos meus anos no subúrbio, passei do momento "pão-com-banana" (definição da minha mãe para cortes de gastos domésticos supérfluos) ao momento "roupa de botique". Tive a coleção completa da Barbie do ano de 1988 e virei bolsos em busca de moedas para passagem em 1998. Como quase todo fruto da minha geração e do meu meio, tive altos e baixos numa eterna corda bamba. Convivi com garotas que aos 15 viajaram para a Disney e com garotas que aos 15 não terminaram a escola por conta da gravidez de um fruto do Waldisnei.
A convivência com diversos grupos sociais e diferentes faixas econômicas me presenteou com um panorama rico, formado por milhares de opiniões e posicionamentos, de todas as formas e alinhamentos possíveis. O que consegui absorver disso tudo, não só ajudou na minha profissão, como foi fundamental à formação das minhas próprias opiniões. Sempre gostei de pensar que, apesar de discordar, concordar e discutir constantemente, sempre ouvi todos os lados. Aos poucos fui formando uma opinião, que se não é de direita, também não é necessariamente de esquerda, pelo menos no aspecto formal das divisões clássicas. Ainda acredito que não há uma forma de governo ou alinhamento político perfeito, e que a humanidade está longe de elaborar um modelo definitivo e infalível de como se organizar politicamente. Nem sequer sei se esse modelo existirá, dado a complexidade psicológica humana.
Mas antes que me perca totalmente, devo dizer que sou a favor dos aspectos sociais em detrimento dos aspectos econômicos.
Não ficou claro?
Pois bem, prefiro o fator humano ao fator dinheiro, mas concedo que o dinheiro é a forma de troca fundamental de valores na sociedade - porém a finalidade do mesmo deve sempre resguardar os direitos coletivos de garantias fundamentais. Exemplo: não sou a favor do fim da propriedade privada, desde que esta respeite as garantias mínimas e máximas da sociedade - de comer, circular, viver, preservar, de exercer suas práticas e culturas, de ter segurança e até de morrer. Curto casa própria e propriedade rural. Não curto desmatamento e latifúndios. Isso, caros parcos leitores, me alinha à esquerda. Não exatamente ao Marxismo de manual (escrito geralmente por pessoas que nunca leram Marx), ao ditatorialismo, ou as disparatadas baboseiras radicalistas. Mas também me coloca muito longe (e com bastante nojo) de teorias de liberalismo, de privatizações, de neocolonialismos, da Tradição-Família-Propriedade, dos ditatorialismos e da maior parte da Elite discriminatória ignorante (geralmente aquela que chama o país de "país de analfabetos" quando eles mesmos não tem um pingo de discernimento educacional-intelectual-questionador).
Não ficou claro?
Pois bem, prefiro o fator humano ao fator dinheiro, mas concedo que o dinheiro é a forma de troca fundamental de valores na sociedade - porém a finalidade do mesmo deve sempre resguardar os direitos coletivos de garantias fundamentais. Exemplo: não sou a favor do fim da propriedade privada, desde que esta respeite as garantias mínimas e máximas da sociedade - de comer, circular, viver, preservar, de exercer suas práticas e culturas, de ter segurança e até de morrer. Curto casa própria e propriedade rural. Não curto desmatamento e latifúndios. Isso, caros parcos leitores, me alinha à esquerda. Não exatamente ao Marxismo de manual (escrito geralmente por pessoas que nunca leram Marx), ao ditatorialismo, ou as disparatadas baboseiras radicalistas. Mas também me coloca muito longe (e com bastante nojo) de teorias de liberalismo, de privatizações, de neocolonialismos, da Tradição-Família-Propriedade, dos ditatorialismos e da maior parte da Elite discriminatória ignorante (geralmente aquela que chama o país de "país de analfabetos" quando eles mesmos não tem um pingo de discernimento educacional-intelectual-questionador).
Então, qual o fenômeno embutido nisso?
Bem, se voltarmos demais na História do país (correndo o risco de perder o foco aqui e escrever uma tese), talvez não percebamos que o país tem uma formação atípica de Elite - que já lá no início se coloca como Elite intelectual, apesar de ser fruto de uma oligarquia ruralista, e se coloca como "os pensadores do país", numa tentativa de formar uma nova camada urbana e questionadora, de aspiração burguesa, sabiamente posicionada para traduzir os anseios da população de forma não muito desagradável aos mandatários econômicos do país. A geração de 1870, positivista até o pescoço, se acreditava capaz de realmente elevar a nação e efetuar todas as mudanças necessárias para tornar o Brasil um país de primeiro mundo.
Mude os anos do parágrafo acima e você notará que nada mudou por muito tempo: A Elite que se vê como a intelectualidade tutelar do povo - A oligarquia originária que comanda nas sombras, sustentando a mesma elite que a "questiona" (desde que não seja muito, senão como acontece com todo filho, toma uma surra do pai) - a necessidade de "traduzir" o anseio do povo para alguém - a elevação utópica do país à condição de "Primeiro Mundo".
Por quantos anos vimos isso acontecer? Em quantos diferentes discursos? Pois com o advento da República, as mudanças que vieram não trouxeram a cabo o questionamento crucial: quem é esse povo e por que ele precisa de tradução?
"Ah, o povo é o povo ignorante, das ruas" - se não é vítima do desleixo da sociedade e de suas mazelas, é culpado por escolher mal e porcamente seus representantes. Essa objetificação do "povo brasileiro" é uma constante em todos os discursos, de todos os lados da política nacional. O curioso é, quando alguém fala "povo" no Brasil, sempre se fala em terceira pessoa. Como se "povo" não incluísse a própria Elite, a própria Oligarquia, os próprios mandantes.
Isso tem um efeito fantástico - a cisão da sociedade em NÓS versus ELES. Sendo que o NÓS pode ser o próprio indivíduo que se coloca como "povo" contra a "Elite" ou a "Elite" que não se enxerga como "povo". (notem que coloco Elite em maiúscula, explico já). As posições são mutáveis, mas a cisão é permanente.
Pulamos para a Revolução de 30 e encontramos um ditador que rompe com as oligarquias fracas que o elegeram (fruto de uma erosão natural das mais fortes) e se alinha com uma camada da sociedade até então considerada quase fictícia - a classe trabalhadora. Essa, coitada, não é nem povo, nem elite - é um adolescente rebelde que precisa ser controlado a qualquer custo, por que tem idéias demais e obediência de menos. Se o "paizão" (que dá com amor e tira com violência) elegeu o efebo como favorito, causou temor ao priorizar o inconstante e tornou-se traidor eterno de quem o colocou na posição que ocupa.
Ao mesmo tempo, a relação que parece com amor é sufocante e constantemente questionada - o controle pesado leva à sonhos de rompimento e rebeldia, que passam a ser o discurso dos "avós" traídos: você mima o moleque, ele vai te apunhalar. O punhal então é desferido pelo próprio pai contra si mesmo, que na ilusão de se tornar o pai eterno esqueceu que os filhos crescem e ensejam romper a clausura.
Ao mesmo tempo, a relação que parece com amor é sufocante e constantemente questionada - o controle pesado leva à sonhos de rompimento e rebeldia, que passam a ser o discurso dos "avós" traídos: você mima o moleque, ele vai te apunhalar. O punhal então é desferido pelo próprio pai contra si mesmo, que na ilusão de se tornar o pai eterno esqueceu que os filhos crescem e ensejam romper a clausura.
A Elite então (Elite maiúscula, não por ser uma elite qualquer, mas o fruto burguês intelectual da árvore ruralista oligárquica) se esquece que um dia, nos idos de 1870, negou suas origens e rompeu com os pais e, em uma tentativa desesperada de controlar o adolescente rebelde, busca em sua árvore familiar alguém que possa impôr limites ao avanço do raciocínio ideológico do mesmo - muitas idéias estão em circulação, a maior parte perigosamente violentas, e não só contaminam as "massas", como os filhos da própria Elite, que apesar de todo amor e futilidade empregados em sua educação, agora andam com os pobres e/ou "revoltosos" e com eles trocam informações.
Mas sem percerber a própria Elite já não é a mesma de sempre. Se antes era o filho desdenhoso da Oligarquia ruralista, agora é o controlador das reformas modernizantes do país - uma burguesia com linha branca na cozinha e veículos motorizados na garagem - não obstante, os mesmos prometidos e adquiridos pela nova classe média ao custo altíssimo de penhorar a economia interna e aumentar a pobreza, mantendo a ilusão de qualquer um poderia ter sua própria batedeira: desde que fechasse os olhos para aqueles que nunca entrariam sequer na loja.
Nesse ponto a Elite comete seu primeiro erro gravíssimo: não percebe que a chamada classe média e a classe trabalhadora podem em alguns momentos ser a mesma e efetuam uma divisão ideológica - Classe média é quem trabalha sem reclamar e mantêm a moral e os bons costumes. Classe trabalhadora são os que reclamam do pagamento, fazem greves, questionam e precisam ser controlados e direcionados, para se tornarem "classe média".
Faço uma pausa de fôlego - mesmo que você, sentado lendo isso, discorde, me diga: essa divisão psicológica nunca passou por sua cabeça ao ler os jornais? O erro se faz presente atualmente, mas ficará claro quando comentar o erro número 2: o mais grave de todos (e juro, não é exatamente o que você pensa).
Então o que fazer com essa classe trabalhadora teimosa que se recusava a aceitar o funil que os conduziria naturalmente à condição socio-economica e moral de classe média? "Só por que nem todos alcançariam esse status, eles tinham que reclamar? Quanta ingratidão! Os culpados não somos nós, e sim o Darwinismo Social, ora bolas!"
Para conter o menino rebelde e suas idéias contaminadoras, contam com um primo estranho, do qual não sabem exatamente o que pensa, mas sabem o suficiente para estimulá-lo. Esse primo vem de tempos atrás, da infância burguesa, que intelectualizada desprezava a necessidade do primo de tanto falar em defesa e armas - deram as armas, deram as fardas e ele continuava a falar em reprimir e vigiar, em prender e matar os inimigos do estado. O primo falava tanto de "soberania", "nação", "ordem" que chegavam a se identificar com o passado positivista burguês, exceto que a formação dele não incluía a palavra "democracia" - era mais um corolário de força e ordem do que de liberdade civil e econômica. Fizeram reuniões, elaboraram planos e pontos em comum e finalmente deram o braço a torcer de que ninguém havia apresentado uma solução melhor para o problema. Havia toda uma série de elementos a se manter e o rebelde não estava facilitando - continuava a fazer perguntas e ultimamente, vinha até colocando pessoas no governo...
O primo ganhou as ruas e colocou seus carrinhos de chumbo posicionados, catou cada rebelde que via pela frente e eliminou o problema com precisão. Não só isso, mas fez reformas, operou "milagres" e trouxe a tão sonhada estabilidade econômica e "democrática". Fez com que a Elite finalmente se sentisse dona do país.
O que o primo esqueceu de dizer foi que, no contrato firmado, ele era o novo dono do pedaço.
A Elite então já velha, se apavorou - o primo não sabia diferenciar "rebelde" pobre de "rebelde" rico e a própria Elite vendeu seus filhos para manter seus privilégios. Além disso, já não bastava afunilar os trabalhadores em classe média - eles perderam não só a linha branca, mas a educação, o direito de ir e vir e o pior de tudo: o poder de compra! "E agora? De que adianta fazer carros e geladeiras se ninguém comprar? De que adianta colocar à venda se ninguém compra?"
O primo perdeu a mão e a Elite, já cansada, retirou seu apoio até que ele mesmo se tocasse que já tinha feito o suficiente: sua heróica revolução já havia salvado a nação, era hora de deixar os filhos mais comportados (os que permaneceram vivos) da Elite voltarem para brincar.
O que se sucedeu foi um pandemônio: ninguém sabia exatamente o que fazer! Ora bolas, os velhos da Elite estavam à beira da morte, a neo-elite reduzida à seus membros mais comportados (porém mais dotados de idéias do que de prática), a classe média praticamente inexistente e reduzida à sub-classe, os trabalhadores cansados, agredidos e paralíticos, os rebeldes dispersos ou mortos - e uma conta que ninguém sabia como pagar.
O "povo", vítima condicionada à agressão diária, acaba por ter medo de escolher - dentre o sapo barbudo e ex-rebelde e o garoto da neo-elite inexperiente, fica o garoto. "Afinal, antes falta de experiência que a simples menção à palavra rebelde. Vai que..."
O garoto decide, como todo menino rico e mimado, fazer o que lhe der na telha e quando o "povo" grita de desespero, a neo-elite remove seu membro mais vergonhoso do cargo, antes que as coisas piorem. A neo-elite decide então pensar no que fazer: senta e monta um plano, chama os mais acadêmicos para, através de gráficos e planilhas, retomar o funil. Não o mesmo de sempre, agora um funil renovado, com idéias novas e novo material. Mas como seus pais queriam, funcionando para não deixar que todos passem.
Só o suficiente que garanta a entrada do dinheiro.
A Neo-elite tem novos brinquedos, se desfaz dos antigos - vende muita coisa, limpa a casa e permite que se faça um caixa - não para construir coisas novas, mas para jogar pôquer com os amigos de fora. O novo jogo envolve vender e comprar dinheiro, ações e outras coisas que apavorariam os velhos rabugentos da Elite. Chamam a partidinha de "neo-liberalismo". É só sentar e assistir o dinheiro entrar e sair, não precisa ficar construindo coisas e expandir o parquinho. Basta só manter um vigia ou outro.
E é aqui que a Elite, agora Neo-elite, comete um erro que nem seus pais cometeriam - esquecem de acompanhar o que o "povo" anda fazendo. Prometem dar uma olhada de vez em quando, mas o jogo é tão interessante que mal dá tempo entre uma rodada e outra.
Esse erro, o erro número 2 é sim, o pior de todos e responsável pela mudança que falei lá no início. O "povo", ou seja "ELES" não se encontram mais tão divididinhos como antigamente - a classe média já não é tão classe média, a classe trabalhadora agora se não é "povão" (sub-categoria de quase pobres) é desempregada ou pobre mesmo. São ignorantes, não tem voz, não entendem o que significa "Selic", "Superávit"...
Não que aparentemente se importem muito, afinal dançam na boquinha da garrafa como ninguém, descobriram uma nova maneira de pavimentar as ruas e conseguir um tênis novo (comprando e vendendo um bagulho que os netos da elite amam e controlando com alguns brinquedos russos enferrujados), assistem TV, comem comida americana, abaixam a cabeça para qualquer coisa.
Mas de vez em quando esse "povo" se pergunta - e não se engane, eles se perguntam, ainda que primitivamente:
"Quem são os que jogam o tempo todo? Por que eles estão lá? Sim, eu votei por sapatos, por simpatia, por amizade, por comida, por que eles me encheram o saco com um papo de 'frango a um Real', mas por que eles estão lá e não eu?"
"Até teve um cara aqui da rua, que disse que ia lá resolver e não fez nada. Passou a ser um deles e esqueceu de mim."
"Aliás me chamam de burro toda vez que voto em alguém igual a mim, mas que porra! Se votar em um deles dá no mesmo, não dá? Antes alguém igual a mim do que um riquinho metido a besta que vai me ridicularizar e me roubar, né?"
"Se for roubar, que pelo menos seja um dos meus! Ou que me dê alguma coisa!"
Assim, aos poucos, aconteceu o tão ignorado e importante processo histórico que me refiro no início do post. Colocando em termos acadêmicos: O Voto da população, agora com acesso ao processo decisório e aos próprios cargos políticos, se dissociou do voto da Elite. Tanto no direcionamento da escolha (camadas sócio-economicas votando em candidatos opostos), quanto na afinidade do candidato.
Ficou claro agora?
O erro da Elite ou da Neo-elite foi não se tocar de que "povo" não queria mais votar em "elite". Isso tem lados pavorosos, por que como em toda sociedade que dá seus primeiros passos, erros acontecem: Se elegem mulheres-comidas por fome, se elegem cretinos locais que dão leite e pão ao invés de salários, nascem e crescem políticos viciosos, sendo eles pseudo-elite, elite disfarçada ou até mesmo ex-pobres com aspirações de elite, desde que se "comunicassem" através da linguagem do pobre, conseguiam chegar lá.
Nas primeiras eleições, rolou de vale-leite à vale-vida para que o povo acreditasse. E a neo-elite continuou seu jogo, esnobando e desprezando as aberrações com que acabaram se acostumando a lidar, relativizando o fenômeno como "populismo" ou "coronelismo", sem perceber que as coisas não eram exatamente como antes. O coronel e o populista davam algo em troca, cuidavam de sua cria antes de roubá-la e mantinham o voto direcionado a si mesmos. A neo-elite nem isso fez. Então antes que a mudança emergisse, pareceu que as coisas haviam voltado ao que eram antes, no tempo dos velhões.
O joguinho de pôquer continuou até o ponto onde o ex-rebelde barbudo pobretão se tornasse estranhamente simpático a toda uma população que, no fundo, se não era ex-rebelde, era barbuda ou simplesmente pobretona.
Tarde demais, né?
Antes que alguém diga que isso faz parte da democracia, basta dizer que mais importante que o "povo" votar em alguém que era (aparentemente ou não) "povo", o perfil dos votos foi aos poucos se separando - a "Elite" ainda vota na "Elite", mas o "povo" vota cada vez mais em si mesmo.
Para a surpresa da própria população, do povão mesmo, o barbudo conseguiu tirar dos ricos e colocar na mão deles o que há muito não tinham - ou até mesmo que nunca tiveram. O funil foi trocado por novas máquinas e brinquedos, os vales-leite por leite comprado com salário. A cagada estava armada.
A princípio, os próprios apoiadores do barbudo quiseram brincar de neo-elite e ele, escorregadio como um sabonete, deixou que a mídia apontasse a mira e desviou do tiro. Pronto, agora era só eliminar esse ou aquele neo-elite infiltrado e ele poderia cuidar do povo. Deu a muita gente o gostinho de ser, pela primeira vez, classe média sem categorias ideológicas, só no sócio-econômico mesmo. Continuaram dançando na boquinha da garrafa, mas com um Estéreo de última geração. Muita coisa não foi feita: os brinquedos russos ainda são usados para garantir o consumo dos viciados, a educação não foi melhorada, só expandida o suficiente para que coubesse quase todo mundo.
Ah, e a ofensa maior de todas: o mundo aplaudiu! "Co-mo As-sim?" "Nossos antigos companheiros de pôquer agora recebem o sapo pra jantar e ainda pedem dinheiro emprestado a ele!"
Mesmo depois disso, ainda existem aqueles que chegam ao poder e nada fazem, bem como os meninos da Neo-elite (e os que acham que vão se tornar/ou fazem parte da Neo-elite) continuam circulando e agora tem que falar de "inclusão social" ("Ah, o horror! o horror!") para garantir suas rodadas de carteado internacional. Se bem que pouca gente quer jogar agora - todo mundo está meio duro e sem grana para apostar, exceto o barbudo que, tirando a pinga, não aposta muito e nem curte o tal pôquer "cambial especulativo". Ele é pragmático: quer montar fábricas, vender para os outros e dar emprego e faculdade para todo mundo. "Que tédio..."
Nesse meio tempo, entre uma Tv de plasma nova e mais uma carteira assinada na família, essa nova classe média - antiga e nova, toda junta e misturada - vem pensado mais um pouquinho:
"Se eu votar, a coisa pode mudar. Ainda não sei em quem direito, mas tenho alguma idéia."
"Se eu colocar um da elite que diz que é povo, é roubada. Posso até colocar um da elite, mas ele vai ter que dizer que é elite e me dar o que eu quero."
"Ainda voto no pobre aqui da rua, até por que, vai que ele faz por mim, né?"
Se esse povo conquistar educação intelectual-questionadora, a Elite (seja ela antiga ou nova) está com os dias contados nesse país, por que o pobre sabe agora fazer as contas e perceber que o salário de um ricaço paga o salário do bairro dele inteiro.
"Bem, pode ser que os ex-rebeldes (que nasceram na elite ou não) façam alguma coisa, mas na boa? Acho muito mais fácil um não-elite que um deles. Se bem que eles têm boas idéias, né? A gente pode usar?"
O erro fundamental da Elite brasileira foi não perceber que, ao ignorar o povo e criticar a ausência de cultura política do Brasil, criou uma nova cultura - ainda não aperfeiçoada, ainda disforme, porém funcional - geradora do mecanismo de sua auto-eliminação do poder.
Não acontece ao mesmo tempo, não acontece no país todo. Pode reverter-se a qualquer momento e até mesmo gerar uma nova cultura política de Elite.
Pode...
De onde vejo, desse meu cantinho privilegiado no ponto exato de encontro da multi-facetada sociedade brasileira, acho difícil. A Elite (e não falo da elite intelectual, que pode ser de classe média ou não) não aprendeu a "ler" a sociedade brasileira, exceto superficialmente. Passou tanto tempo traduzindo os anseios do povo para uma linguagem aceitável que esqueceu-se de enxergar para além desse aceitável, em termos de demanda política, social, econômica, cultural. Coloca no mesmo saco os Tiriricas e Lulas sem perceber que eles são sintomas de seu próprio desastre pessoal, que se consolidará na hora que souberem diferenciar um do outro.
O povo aprendeu a votar em si mesmo. Não exatamente na parte boa de si mesmo, mas coerentemente rumo ao fim dos que há muito tempo se afastaram, daqueles que escolheram não fazer parte do povo para desenvolvê-lo como um todo.
E como povo - pobre, elite, intelectual, classe média, ricos, classe artística, conservadores, liberais, brancos, negros, mestiços, indígenas, urbanos, rurais, ruralistas - como Brasil, está aprendendo e dando os primeiros passos, ainda errantes na direção de definir a resposta à pergunta fundamental de toda sociedade:
Quem queremos ser?
(...) Um dia me disseram quem eram os donos da situação..
Sem querer eles me deram as chaves que abrem essa prisão
E tudo ficou tão claro: O que era raro, ficou comum.
Como um dia depois do outro. Como um dia, um dia comum...
A vida imita o vídeo, garotos inventam um novo inglês.
Vivendo num país sedento, um momento de embriaguez...
Somos quem podemos ser...
Sonhos que podemos ter...
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