8.9.16

Perfect

Às vezes me pergunto por que ainda tenho um blog. A resposta é sempre a mesma: é para cá que corro quando a coisa aperta.

O Facebook, o Tumblr, o Twitter foram aos poucos tirando a função disto aqui, mas de certa forma este espaço ainda obedece a regra sob a qual foi criado, ser um lugar de desabafo pro meu excesso de caracteres.

Amo/sou textão.



Ironicamente existem lacunas temporais (com ou sem intenção). A última postagem remota ao início de uma fase que já acabou tem quase um ano, mas mesmo assim não senti vontade de escrever sobre isso. Não por falta de importância, mas por não haver necessidade real. O que deveria ser dito, escrito ou processado levou menos tempo do que imaginava. O ciclo se fechou sem prestações emocionais a pagar.

Ainda assim o desfecho virou um processo de transformação que, ao contrário do que preconiza o bom senso, me fez voltar ao ponto de partida. Poderia usar isso para justificar a ausência textual, mas nenhuma volta significa retomar o que ficou para trás sem acréscimos. A mulher que voltou não é mais a que partiu, mas esse reencontro foi crucial para que houvesse uma redefinição no que sou. Uma redescoberta sobre novos parâmetros e, principalmente, um processo de libertação.

Mas aqui estou eu, na madrugada escrevendo. Mais velha, mais séria, tentando retomar os compromissos velados que haviam sido esquecidos por aqui. Especialmente o compromisso de não me deixar levar pelos parâmetros de vida mediana que assombram todos nós.

Talvez por isso não escrevi sobre esse período, pois teria que admitir que fui seduzida pelo apelo da estabilidade ao me unir a quem acreditava ser um espírito crítico e acordei em um pesadelo onde vivia como um poster de mulher americana da década de 50, um cosplay barato e mal encenado de Mad Men. Pagando boletos, gerando PIB e vivendo miseravelmente infeliz, com as minhas ambições soterradas e meus ideais sufocados. A esposa perfeita, na casa perfeita, com as roupas adequadas, salto alto, emprego estável, função de gestão, empoderada dentro do quadrado, acumulando dívidas, tendo um "padrão de vida", engolindo piadas machistas e passividade agressiva junto com o café da manhã, me olhando no espelho e perguntando "quão medíocre estou me tornando?"

A volta foi dura e me cobrou o preço do escárnio daqueles que julgam a liberdade como irresponsabilidade e a não-adequação como imaturidade e sinal de uma adolescência tardia. O bom de voltar transformada é que não importa. Nenhum deles pagam meus boletos.

Esse reencontro entre o que deixei e o que trouxe de volta equacionou meus planos do que pretendo ser daqui para frente. Ainda me prendem amarras pragmáticas - não é legal voltar para casa da mãe aos 34 - e ainda há uma longa trajetória a impulsionar, mas é bom poder escolher o que descartar e o que levar na bagagem. Esse processo foi e está sendo libertador em vários aspectos e reforçou conceitos e posicionamentos que haviam sido deixados de lado. O que deflagrou determinadas posturas diante da mudança brusca na política atual e no cenário geral em que vivo. Reforçou mais que nunca as minhas convicções.

Mas o impulso no início do ano foi leve, ainda que forte, e trouxe alívio. Como vestir as próprias roupas depois de um longo tempo usando uma fantasia. Ainda que volta e meia me pergunte como caí nessa armadilha, procurei não me culpar tanto e focar no que deveria fazer com o porvir.

Só que a vida é aquilo que acontece enquanto fazemos planos, certo? 

Essa liberdade recém adquirida - que tem mais a ver com escolhas de vida do que com viver ou não um relacionamento em si - trouxe vários tropeços, um balançar de pernas para fora do quadrado, novas atividades, reencontro com amigos e uma readaptação aos termos modernos de relações humanas. 

Muito chopp atrasado, um não-ter-hora-para-voltar-para-casa, tempo livre, a opção de não lavar a louça, novos aplicativos e novas formas de interação (ok, isso mais por que troquei de celular em janeiro que qualquer outra coisa). Me distraí redescobrindo o que podia fazer e escolhendo o que poderia ser. A vida não estava resolvida, mas havia esperança e planos. Muitos planos.

Alguns deles significavam simplesmente não ter plano algum, como me deixar levar pelo novo, experimentar novos lugares, conhecer gente nova, não me prender a nada, nem a ninguém.

Cabe explicar que nunca enxerguei relacionamento como meta. Para mim sempre foi a consequência de encontros entre seres e da interação que surge disso. A verdade é que sempre me senti bem sozinha. Vivi grandes partes da minha vida (talvez algumas das melhores) sem a necessidade de ter alguém que justificasse minha existência. Então, só me abri ao novo, sem pressa nem expectativas. Talvez um erro inocente foi cometido aí: o de acreditar que nada poderia me derrubar novamente já que, convenhamos, o que pode ser pior que uma separação?

Enquanto desfrutava dessa redescoberta, bolei alguns parâmetros para não cair no mesmo erro:

- Ser eu mesma, sempre. Quem quiser que fique
- Não forçar a barra com nada nem ninguém. (um erro cometido anteriormente foi tentar prolongar o que estava errado na tentativa de consertar o que não tinha conserto)
- Não perguntar demais. Deixar que as pessoas se expressem por elas mesmas e que só contem aquilo que se sintam a vontade. (Sou curiosa e preocupada com as pessoas ao meu redor, mas fui acusada de forçar quem não queria a desabafar contra a vontade)
- Não falar demais. "Seja sucinta".
- Não pedir desculpas 

Confesso que algumas vezes falhei e não consegui manter, mas tentei ser fiel a esses parâmetros e hoje enxergo que fui contraditória em alguns deles. Mas a vida tava boa. Tranquila. Favorável. 2016 parecia que seria um bom ano. 

Poderia parar aqui e resumir que 2016 não deixou a desejar em termos de decepção. Perdi metade do meu salário durante alguns meses por um motivo estapafúrdio, fui jogada de um lado para o outro à revelia no emprego, enfrentei umas barras aleatórias dentro de casa (de briga com a companhia energética à morte do Roy) sem nem mencionar o Golpe, todo o processo de luta política e toda a transformação bizarra que está acontecendo no país.

Mas no início do ano estava inocentemente ocupada com as minhas caixas de mudança, com a chegada do Carnaval, algumas obras de readaptação em casa, em retomar minha playlist e seguir em frente. É sintomático que o hábito de ouvir música havia sido suprimido nessa lacuna de dois anos. Talvez por isso não estava escrevendo.

Ocupada que estava no processo novo, meu ânimo havia sido retomado com bastante força. Entre um café e outro contrato assinado, entre uma notificação nova e outro chopp, abri algumas janelas para outras realidades. Algumas não se sustentaram nem por um dia, outras eram janelas para cenas desanimadoras, gente sem graça e sem diálogo, pessoas presas a mecanismos sociais idiotas e outras coisas ainda mais assustadoras ou risíveis. Mas no meio delas havia uma janela diferente. 

Minha primeira lembrança é de uma foto num fundo branco. Não me recordo quanto tempo olhei, mas havia alguma coisa naquela foto que prendeu minha atenção. Sem grandes dramas ou pinceladas românticas, descobri muito mais tarde que era um pequeno detalhe sobre os músculos faciais. Uma anomalia rara que fazia com que o retratado sorrisse com os olhos ao invés dos lábios.  

Vida que segue: comprar as tintas do quarto, subir com mais três caixas, reinstalar a cortina, montar o armário, aceitar um convite para um café, recalcular o contrato, visitar o cliente, planejar o Carnaval, marcar blocos, tomar um susto com a quilometragem, receber uma música, uma foto, mais outra, conversar até a madrugada, encher a cara, descobrir como se tira uma selfie... 

A janela começa a servir de posto de troca e o roteiro do ônibus de manha é preenchido com o abrir de uma caixinha de onde pulam sons e cores, imagens, notícias, música, vídeos. A comunicação não se dá só por palavras, mas por outras linguagens e encanto. Principalmente encanto.

A interação teve efeitos iniciais de catalização no processo que já estava vivendo e é explosivo ter uma troca de energia tão intensa sem prazos ou delimitações. Desejo sem cobrança, afeto sem passividade agressiva, diálogo sem competição. Honestamente não me preocupei no que se tornaria ou se era algo realizável ou não. Só me abri ao que vinha e me surpreendi diariamente com a constância e com o crescimento dessa janela. Não me perguntei se do outro lado haveriam outras janelas e aceitei correr o risco de que a minha pudesse ser fechada a qualquer momento. Era uma possibilidade real, apesar do passar dos dias provar o contrário.

Havia no entanto um receio da minha parte. Sou uma obra inacabada, daquelas tipo obra de prefeitura, que ficam abandonadas um tempo, se desgastam e quando finalmente são retomadas demandam mais tempo e dinheiro que o plano inicial. Não me sentia suficiente para o que se apresentava tão perfeito que, se tivesse projetado não teria chegado nem perto. Era surpreendente demais o quanto parecia se encaixar em tudo, até nas diferenças. Uma alma boa, madura e algumas vezes pueril, calmo e sincero, ainda que incerto (por que mistérios são sedutores), impulsivo sem mecanismos de dominação sociais, daqueles tradicionais que levam à tentativas de manipulação e versátil na dualidade entre o culto e o popular, entre o humor e a seriedade. Além da beleza e da forte latência de química real. Como lidar com isso?

Acho que não soube. Preocupada em não me atirar de cabeça, não percebi que meu lado da janela era cinza e sem graça. Pode até ter sido colorido de início, mas a medida que os problemas cotidianos entram na roda, as cores perderam o brilho. Os problemas me engolfavam, mas quis manter silêncio para não incomodar. Segurei a onda de não me tacar no primeiro ônibus ou avião que passou e hoje já não sei mais dizer se isso foi bom ou ruim.

Minto, foi bem ruim. Teria sido melhor quebrar a cara do que passar o resto da vida na dúvida. 

A hesitação provavelmente abriu espaço, uma pequena lacuna que foi se alongando com o tempo. Outros problemas surgiram e por mais que houvesse compreensão de ambas as partes (sim, somos adultos), as cores e sons foram aos poucos se dissipando. 

É de se esperar uma certa estabilidade nos impulsos iniciais, sempre acontece. Mas onde a comunicação é a chave, o silêncio é uma cratera. 

Retomadas, recaídas, tentativas frustradas, a situação do país se agravando e um laço que parecia fortalecido pelos problemas talvez ocultasse sinais de desgaste.

Eu não enxerguei. Por mais que tivesse meus problemas, estava feliz demais com tudo que estava sentindo para perceber que estava contribuindo para isso. Precisou uma distancia ainda maior para que a cratera ficasse visível e no início da percepção me esforcei ainda mais para engolir meus dilemas e não contaminar a interação que ainda existia. 

Não sei ler mentes e talvez não saiba muito bem diagnosticar situações, mas acreditei que estava me esforçando e não sei como isso apareceu do outro lado da janela. Do meu era mais café, noites em vigília com o Roy doente, tateando o Facebook de madrugada para não sucumbir no intervalo dos remédios que ele tomava, sufocar as perguntas crescentes (quem é você para cobrar alguma coisa, garota?) e esperar. Uma notificação, uma notícia, alguma foto, qualquer coisa.

Não havia nenhuma outra janela do meu lado, por que eu não queria e por não haver nem energia para tanto. Nem vontade. Então só fazia esperar e aos poucos o silencio preencheu o espaço. Taquei pedras, fotos, música, qualquer coisa, mas as respostas dependiam de fusos horários, de tempo livre e por fim de vontade. 

Insisti até onde pude. Reclamei e até cobrei. Até me dar conta que a janela havia sido fechada.

Quando me dei conta estava no meio de uma cratera enorme. Não tinha percebido o quanto havia me aberto e o quanto havia sido preenchido ate que foi embora. Caí no cliché horroroso de só se dar conta depois que perdeu e até agora não sei exatamente o porquê. Tenho a suspeita de que meu mundo não era tão colorido assim. Muita tinta ainda fresca, muita coisa por pintar. Muito cinza, muitas rachaduras. Não havia tanta melodia e as vezes até reclamações. 

Isso é muito pouco para quem tem um mundo já preenchido de cores fortes, para quem vive na prática aquilo que acredita. Eu ainda tenho minhas amarras na vida medíocre a qual sucumbi. Ainda preciso de muita reforma para ser aquilo que quero. O timming se perdeu nisso.

Sim, é algo bem comum de acontecer. Ninguém deve ser culpado de perder o interesse, ainda mais se para o outro lado não for algo tão grande assim, mas é impressionante como dói. E dói demais. E, pelo menos no meu caso, não vai embora. Não é uma questão de ego, nem de apego. A perda é real e a decisão, independente do motivo, será respeitada.

Ninguém é obrigado a nada e nem a se sentir culpado, mas tenho que aprender a lidar com esse vazio que me resta. Gigante. Tão grande que me pergunto se dimensionei errado o que recebi versus o espaço que ocupou na minha vida, mas fato é que não imaginava que teria tanta importância.

Em tom de bravata com a situação política do país, disse que minha esperança quando apanha vira luta. 

Fácil falar isso na internet. Difícil equalizar na realidade.

Talvez seja um pouco dramática demais, mas confesso que não esperava nada disso. A única conclusão que consigo chegar é transformar isso no impulso de continuar nos meus planos iniciais. Preciso ao menos tentar me tornar aquilo que planejei e não ficar presa a uma existência menor. 

Tentar reformar meu mundo e viver de acordo com aquilo que acredito. Só posso focar nisso.

Até parar de doer.

Nenhum comentário: