15.10.11

Even Better Than The Real Thing (Fish Out Of Water Mix - 2011)


"You have to reject one expression of the band... first,
Before you get to the next expression.
And inbetween, you have nothing.
You have to risk it. All."

Ontem eu falei sobre o documentário do U2 que ia passar no Festival do Rio - gratuito, à meia noite, no cine Odeon - e assim que terminei de postar, fiz o que ameacei fazer: catei o torrent dele e do outro filme (Killing Bono) e coloquei pra baixar.

Só que lá pelas 9 da noite me deu um tédio imenso e praticamente rasguei o pijama e saí correndo. E ainda cheguei em casa antes do torrent terminar de baixar...

U2 - From The Sky Down é completamente diferente do que eu imaginava (clique na imagem para ver o trailer).

Se documentarista fosse, faria um percurso completamente diferente do feito pelo diretor Davis Guggenheim. Mas o mérito do cara é absurdo, em percorrer o processo de criação e reinvenção de uma banda à beira do colapso. 

Ao contrário do descrito pela Folha de S. Paulo, o filme não mostra "as dificuldades da banda para fazer seu álbum "Achtung Baby" (1991), considerado uma reviravolta na carreira do grupo (...)", o que o filme mostra é o impacto que a viagem aos EUA e a fase "americana" tiveram no processo criativo do grupo - um colapso de falta de identidade e criatividade que levou a banda a rejeitar a imagem que eles mesmos estavam criando - e como essa ruptura abriu espaço para a reinvenção conceitual do U2.

Sempre que se fala da trajetória da banda, a virada de Rattle and Hum para Achtung Baby é descrita como um vácuo, onde subverteram-se os valores artísticos e, não obstante, alguns fãs radicais rejeitam o que chamam de "Fase Zoo TV" como um erro (musical e artístico), ou um exagero megalomaníaco e se consideram mais puristas em relação às origens do pós-punk industrial.

Partindo do que era o U2 antes do Joshua Tree, o documentário deixa a banda solta pra fazer sua própria viagem autocrítica (e não uma ego trip) aos elementos que tornaram o U2 um sucesso nessa primeira etapa.

Diferente do que eu havia dito no post anterior, foi o Joshua e não o Achtung que haviam colocado o U2 no centro da mídia - nos estádios, na capa da Time, nas lentes de Anton Corbjin, na Rolling Stone. Então, como eles mesmos descrevem, o quarteto de irlandeses meio caipirões saiu em busca de um mergulho na música americana, na raiz da cultura e no próprio sucesso.

O que grande parte dos fãs considera o início do auge, para eles foi o início do declínio.

O Rattle and Hum não só se tornou o primeiro grande fracasso artístico deles enquanto banda, como representou sim, a ego trip que serviu de gatilho para a fase posterior: Pra quem não conhece a história, a idéia começou como um documentário sobre a turnê norte-americana, ao qual foi acrescida a tal busca pela sonoridade dos EUA, uma série de músicas "novas" (a maioria covers) em um álbum e no final se tornou um projeto gigantesco de "busca pela pureza sonora", com direito a lançamento mundial do filme.


Eles foram cruelmente (e talvez justamente) massacrados pela mídia como arrogantes e perdidos em torno da própria identidade. O documentário-blockbuster expôs a insegurança da banda e uma tentativa de seriedade que passou recibo de pretensão. Eram a banda das imagens preto-e-branco, dos olhares pensativos, das músicas feitas para soarem profundas. Eles mesmos admitem que não desistiram de tudo por muito pouco.

Pros americanos eles estavam redescobrindo a pólvora, pros europeus eles estavam se americanizando demais e em um mundo à beira da grande vertigem da globalização midiática, eles estavam desconectados demais do que acontecia ao redor. Esse foi o ponto de partida para riscar tudo e começar de novo.

Não vou me estender muito sobre o que acontece depois, senão corro o risco de descrever o documentário inteiro, mas o processo em si é fantástico. Não só como artistas eles aprenderam a rir de si mesmos, mas também como a imagem que projetam publicamente e musicalmente é uma farsa. Uma máscara. E assumir esse caráter, subindo no palco e "atirando pedras em si mesmos" foi muito mais construtivo do que uma autocrítica pode ser.

Muita coisa me interessa nesse processo: O caráter de "re-europeização" que eles buscaram, os elementos históricos que marcaram o processo da composição do álbum (em Berlim, meses após a queda do muro), a contextualização histórica e artística da criação e dos próprios membros da banda e, sem dúvida, a reinvenção conceitual rumo a uma nova expressão artística, que acabou não só por salvar a banda, mas por torná-la uma fonte de discussão de um processo histórico que só viria a se consolidar tempos depois.


Nessa parte é difícil separar a fã da historiadora (já falei sobre essa dificuldade de separar o profissional antes) por que eles miraram no que viam e acertaram o que nem imaginavam ver, conceitos sobre a ruptura de processos históricos que Eric Hobsbawn só viria a resumir anos mais tarde com a publicação de Era dos Extremos.

Pra mim, o U2 mergulhou em seu tempo histórico, absorveu o que pode e regurgitou Zeitgeist puro, para um pouco além da percepção da época.

Óbvio que, enquanto banda, eles possuem uma certa limitação artística, e em parte fui beneficiada por postar isso agora de manhã e não ontem de madrugada quando cheguei, por que durante uma discussão com meu irmão no café da manhã ficou ainda mais claro pra mim que, se eles nunca conseguiram inovar muito no aspecto sonoro técnico, eles focaram em uma transformação conceitual sem precendentes - tanto para eles mesmos, quanto para o que havia em termos de banda de rock na época (depois dos Beatles, claro).

O filme traça todas as pistas dessa reinvenção e chega até a explicar o porquê dos trabants destruídos noite após noite no palco da Zoo TV.

O processo de criação da banda, revisitado dentro do mesmo Hansa onde o álbum foi composto, é exposto em todos seus pequenos elementos, quase desconstruído; mas permite que se veja e entenda tudo. Inclusive elementos que aparecem posteriormente na carreira da banda (Pra quem tiver curiosidade, aqui tem uma parte das chamadas Achtung Baby sessions).

Mais curioso ainda é que, apesar da rejeição inicial da fase americana, ela reaparece e continua sendo elemento presente na criação, porém bem mais deglutida.

Já no aspecto cinematográfico, Guggenheim consegue transformar a viagem em algo delicioso, incluindo diversas passagens de desenho animado e arquivos de época - beneficiado pelo fato de que o U2 tem um extenso arquivo de registro. A banda parece confortável ao viajar ao passado e um dos grandes pontos do filme é a sacaneada em diversas bandas que não aguentaram seu próprio desgaste e sofreram com isso perdendo membros ou até se desfazendo.


A conclusão óbvia do documentário é a de que o U2 não seria o que é hoje sem essa grande transformação, mas algumas das conclusões que não ficam tão aparentes passam pelo processo de questionamento do artista na mídia: o que leva uma banda a se desfazer e se perder em seu proprósito inicial, por que é necessário se divertir e rir de si mesmo, o questionamento artístico e até mesmo a busca de uma concepção de arte sobre um momento histórico e um contexto de vida - ou seja, enxergar a sua arte como um processo e não como uma obra fechada, e manter todos os elementos em constante comunicação.

Revisitar o passado acaba transformando a percepção do presente, seja artisticamente, seja emocionalmente. E reconhecer o processo de transformação é um luxo e um trabalho ao qual poucos se submetem.

Fica claro então na versão de 2011 da faixa-título dos dois últimos posts (cujo clipe abaixo encerra o filme) que o processo continua, bem como o porquê das borboletas queimadas, das rajadas de tinta e do esqueleto brilhante que alterna como máscara e interior: Reinventar, recomeçar, queimar a própria reinvenção, jogar arte com uma certa aleatoriedade, a máscara revelando a verdade e a verdade sujeita à máscaras. 

Um pouco de açúcar para atrair as moscas.

E uma bandeira do pikachu no meio de tudo, pra lembrar que todo e qualquer contexto precisa ser absorvido.


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